Desde a posse do atual presidente dos Estados Unidos da América (EUA), Donald Trump, não é novidade que uma das medidas imediatas adotadas por sua administração em relação a diversos países tem sido a aplicação de tarifas sobre produtos importados, sem tentativa prévia de negociação.
Há uma discussão sobre a legalidade desses atos do Poder Executivo, que têm ocorrido de forma unilateral, sem passar pelo Congresso dos Estados Unidos. Alguns argumentam que a imposição de tarifas deveria ser realizada pelo Congresso, pois o Poder Executivo estaria fazendo uma interpretação excessivamente ampla da Lei de Poderes Econômicos de Emergência Internacional (IEEPA) de 1977, a qual autoriza essa imposição apenas em casos de ameaça “extraordinária e incomum”.
Após aplicar tarifas a diversos países e depois da reunião dos líderes dos países que compõem o BRICS, sediada pelo Brasil, o Poder Executivo dos Estados Unidos impôs recentemente uma tarifa de 30%, que logo foi aumentada para 50%, sobre produtos brasileiros importados pelos EUA. É evidente que essas medidas geram tensão comercial internacional em vários setores, mas meu objetivo aqui é abordar a tensão existente em um tipo de comércio que os Estados Unidos exploram bastante no Brasil: a propriedade intelectual. Para se ter uma ideia, no último ano, o maior depositante de patentes no Brasil foram os Estados Unidos, responsáveis por 32% dos depósitos.
Sendo assim, o objetivo deste artigo não é discutir a legalidade desses atos do Poder Executivo dos Estados Unidos, seja sob a perspectiva da regulação doméstica ou da normativa internacional, tampouco analisar a possível motivação política do presidente americano, mesmo considerando que os Estados Unidos mantêm há muitos anos um superávit comercial em relação ao Brasil na dinâmica de importações e exportações entre os dois países. O foco é abordar esse poderoso instrumento de retaliação previsto legalmente no Brasil.
A Lei 15.122/2025, chamada de Lei da Reciprocidade Econômica, estabelece critérios para a suspensão de concessões comerciais, de investimentos e de obrigações relativas a direitos de propriedade intelectual, em resposta a ações, políticas ou práticas unilaterais de país ou bloco econômico que impactem negativamente a competividade internacional brasileira.
Após a imposição dessa tarifa pelo Poder Executivo dos EUA ao Brasil, o atual presidente do Brasil, Lula, aprovou e foi publicado em 15/07/2025, o Decreto Nº 12.551/2025, que regulamenta a Lei da Reciprocidade Econômica. O decreto cria um comitê responsável por deliberar sobre a aplicação de contramedidas provisórias e acompanhar as negociações para a superação dessas medidas unilateralmente impostas. O objetivo é permitir que o governo brasileiro adote contramedidas de caráter provisório e excepcional com um rito mais célere.
Interessante notar que o decreto também prevê expressamente a adoção de medidas relacionadas a direitos de propriedade intelectual, desde que autorizadas pela Organização Mundial do Comércio (OMC).
Mas o que isso significa na prática? O Brasil pode suspender a proteção de certos direitos de propriedade intelectual, como patentes, direitos autorais e marcas de titulares de país ou bloco econômico que adote medidas consideradas incompatíveis com acordos internacionais.
Em relação às patentes, como medida de retaliação, o Brasil pode suspender a proteção das patentes de titulares estrangeiros e, como consequência, autorizar empresas brasileiras a produzir ou importar produtos iguais ou similares protegidos por essas patentes, sem pagamento de royalties. Por exemplo, permitir a produção por empresas brasileiras de um medicamento que estaria patenteado por uma empresa farmacêutica estadunidense no Brasil, sem o pagamento de royalties.
Em relação aos direitos autorais, o Brasil poderia suspender a observância desses direitos em obras estadunidenses. Isso permitiria a cópia, reprodução ou distribuição dessas obras, como filmes, músicas, softwares ou livros, sem a aplicação de medidas de fiscalização contra a pirataria, como forma de retaliação.
A possibilidade de retaliação envolvendo direitos de propriedade intelectual em um cenário de disputa comercial entre Estados Unidos e Brasil não é novidade. Em 2002, o Brasil abriu uma disputa na OMC contra os Estados Unidos por conceder subsídios ilegais a seus produtores de algodão, o que derrubava artificialmente os preços internacionais e prejudicava os produtores brasileiros. Em 2004, o Brasil venceu o caso e, após os EUA não cumprirem as determinações da OMC, o Brasil ficou autorizado a aplicar algumas retaliações, entre elas a suspensão de direitos de propriedade intelectual. O Brasil não chegou a aplicar a retaliação de fato, mas usou essa possibilidade como instrumento de pressão. Como consequência, os dois países conseguiram firmar um acordo bilateral que atendeu aos interesses de ambas as partes.
De fato, trata-se de um instrumento legítimo e funcional para evitar uma escalada desenfreada de tarifas, como ocorreu no início deste ano entre Estados Unidos e China, quando as tarifas chegaram a 145%.
O lado negativo da abordagem da suspensão de direitos relacionados à propriedade intelectual é a insegurança jurídica, pois essa medida desestimula investimentos em pesquisa e desenvolvimento, já que empresas multinacionais passam a enxergar o Brasil como um ambiente de alto risco para a proteção de seus ativos de propriedade intelectual. Do ponto de vista dos direitos autorais, as obras brasileiras, em um ambiente normal, já enfrentam forte concorrência de obras estrangeiras, como grandes filmes blockbusters e músicas internacionais. Ao suspender direitos autorais, o efeito seria prejudicar ainda mais essa concorrência, incentivando ainda mais a divulgação desenfreada de obras internacionais e dificultando a competitividade dos produtos nacionais e da indústria autoral brasileira.
A suspensão dos direitos de propriedade intelectual, embora autorizada pela legislação brasileira e por normas internacionais, envolve consequências complexas e delicadas para a economia e as relações diplomáticas. Diante disso, este é o momento para que o Brasil adote uma postura madura, como o “adulto da mesa”, buscando a negociação e o diálogo construtivo para resolver os conflitos comerciais, ainda que os reais motivos da aplicação de tarifas ao Brasil sejam políticos. Priorizar acordos e entendimento mútuo preserva os interesses nacionais, fortalece a indústria e garante um ambiente de negócios mais seguro e estável para todos os envolvidos.